Prescrição tributária | Postado no dia: 19 novembro, 2024
PRESCRIÇÃO TRIBUTÁRIA: Pode ser arguida diretamente nos Tribunais Superiores ?
Prescrição Tributária: Pode ser arguida diretamente nos Tribunais Superiores?
A prescrição pode ser arguida em qualquer grau de jurisdição pela parte a quem aproveita. É o que define o art. 193 do Código Civil. Mas o que será que o legislador quis realmente dizer com a expressão “qualquer grau de jurisdição”?
A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) reconhece que a prescrição pode ser alegada em qualquer fase nas instâncias ordinárias, inclusive em embargos de declaração, como exemplifica o julgamento dos Embargos de Divergência n. 146.473, relatado pela Ministra Assusete Magalhães.[1]
Todavia, tanto a doutrina quanto a jurisprudência divergem sobre a possibilidade de arguição ou de reconhecimento de ofício da prescrição diretamente nas instâncias extraordinárias, especialmente em razão da exigência de prequestionamento das questões de direito a serem apreciadas pelos tribunais superiores.
Para se chegar a uma conclusão, é essencial compreender os fundamentos que sustentam o instituto da prescrição, analisar as justificativas das correntes divergentes e ponderar os princípios que orientam o processo civil contemporâneo.
1 – Fundamentos e objetivos da prescrição tributária
O ordenamento jurídico estabelece limites temporais para o exercício de direitos por meio de institutos como a decadência e a prescrição. No Direito Tributário, a prescrição fixa o intervalo de tempo no qual o Fisco pode exigir o pagamento do crédito tributário, quando não realizado espontaneamente pelo contribuinte. Conforme dispõe o art. 174 do Código Tributário Nacional (CTN), a Fazenda Pública dispõe de cinco anos para exercer esse direito, sob pena de extinção do crédito tributário, nos termos do art. 156, inciso V, do CTN.
A prescrição tem como finalidade evitar a perpetuação de incertezas e conflitos intermináveis, promovendo segurança jurídica para as partes, sendo considerada de interesse e ordem públicos.
2 – Divergência doutrinária e Jurisprudencial
Humberto Theodoro Júnior argumenta que a prescrição não pode ser levantada pela primeira vez no recurso extraordinário ou especial, pois isso exige o prévio prequestionamento da matéria e a análise de fatos e provas, como a comprovação concreta da inércia do titular e o decurso do tempo.[2]
Por outro lado, Fredie Didier Jr. e Leonardo Carneiro da Cunha defendem uma posição menos rígida, fundamentada no art. 1.034 do CPC[3] e na súmula 456 do STF[4]. Para eles, “se o recurso extraordinário ou especial for interposto por outro motivo, e for conhecido, poderá o STF ou STJ, ao julgá-lo, conhecer ex officio ou por provocação de todas as matérias que podem ser alegadas a qualquer tempo […] mesmo que não tenham sido enfrentadas no acórdão recorrido.”[5] Segundo os autores, o prequestionamento limita-se à admissibilidade do recurso. Uma vez conhecido o recurso, o tribunal superior não está impedido de revisar o mérito integralmente e abordar todas as questões essenciais à justiça da causa.[6]
Esse entendimento menos restritivo já foi adotado pelo STJ, a exemplo do julgamento do REsp n. 939.714-RS. Na ocasião, a Ministra Eliana Calmon observou que, embora a jurisprudência tradicionalmente exigisse rigor quanto ao prequestionamento, matérias de ordem pública capazes de nulificar o julgamento ou embasar uma ação rescisória poderiam ser reconhecidas de ofício, desde que o recurso tivesse sido admitido por outro motivo. A decisão fundamentou-se na Súmula 456 do STF e nos princípios da economia processual e da instrumentalidade do processo:
“ 1. O prequestionamento é exigência indispensável ao conhecimento do recurso especial, fora do qual não se pode reconhecer sequer as nulidades absolutas.
- A mais recente posição doutrinária admite sejam reconhecidas nulidades absolutas ex officio, por ser matéria de ordem pública. Assim, se ultrapassado o juízo de conhecimento, por outros fundamentos, abre-se a via do especial (Súmula 456/STF).
- Hipótese em que se conheceu do recurso especial por violação do art. 161 do CTN, ensejando no seu julgamento o reconhecimento ex officio da decadência.”[7]
Em linha semelhante, ao julgar o Resp n. 789.062/SP, o Ministro Castro Meira esclarece que, uma vez conhecido o recurso especial, o efeito translativo dos recursos permite a análise de ofício questões de ordem pública, ainda que de forma moderada, na instância especial.[8]
Entretanto, a posição do STJ sobre o tema apresenta variações. Em casos mais recentes, como o AgRg nos EREsp 999.342/SP[9] , a Corte Especial adotou uma postura restritiva, exigindo o prequestionamento para questões de ordem pública nas instâncias extraordinárias. Esse entendimento foi reiterado em julgados posteriores, como o AgRg no REsp n. 1.873.701/RS[10], relatado pelo Ministro Felix Fischer.
Didier e Cunha, além de considerarem lamentável essa “aparente superação do entendimento anterior”,[11] destacam que o CPC de 2015 oferece a oportunidade de reverter essa orientação ao consagrar o princípio da primazia do mérito. Esse princípio visa assegurar que o processo alcance o exame do mérito sempre que possível, evitando que meras questões processuais ou formalidades excessivas impeçam a resolução da controvérsia principal, desde que sejam preservadas as garantias processuais das partes.
3 – Por que a prescrição deve ser reconhecida nas Instâncias Extraordinárias mesmo sem prequestionamento ?
Essa posição menos restritiva parece se alinhar melhor aos princípios da instrumentalidade do processo, da economia processual e da eficiência judiciária Além dos fundamentos expostos por Didier e Cunha, é de se considerar que embora o formalismo processual seja indispensável, seu excesso pode desvirtuar a finalidade última do processo, que é a entrega de uma solução justa ao litígio.
Considere, por exemplo, uma execução fiscal em que o crédito tributário já tenha sido extinto pela prescrição, mas essa questão não tenha sido debatida nas instâncias ordinárias. Admitindo-se o recurso por outro motivo, permitir que o Superior Tribunal de Justiça reconheça a prescrição, de ofício ou por provocação, evita a perpetuação de cobranças indevidas e litígios desnecessários, poupando tempo e recursos do Judiciário e das partes envolvidas.
Essa abordagem não apenas garante uma prestação jurisdicional mais célere e justa, como também preserva a segurança jurídica e a estabilização das relações jurídicas. Contudo, é fundamental assegurar o contraditório, conforme determina o art. 10 do CPC, que impõe ao juiz o dever de ouvir as partes antes de decidir de ofício sobre questões não suscitadas.
A exigência de prequestionamento, portanto, deve ser analisada em harmonia com os princípios que orientam o instituto da prescrição — como a segurança jurídica, a paz social e a estabilização das relações jurídicas — e os princípios do processo civil contemporâneo, como a economia processual, a instrumentalidade e a primazia do mérito, consagrados pelo CPC/2015. Reconhecer a prescrição em qualquer grau de jurisdição, desde que respeitado o contraditório, não apenas consolida esses princípios, mas também assegura a justiça no caso concreto, além de promover celeridade e eficiência no Judiciário.
[1] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Embargos de Divergência no Recurso Especial n. 146.473, relatora Ministra Assusete Magalhães, Primeira Seção, julgado em 11 out. 2023, publicado no Diário da Justiça em 19 out. 2023: VI. Na forma da jurisprudência dominante desta Corte, as questões de ordem pública, apreciáveis, de ofício, em qualquer tempo e grau de jurisdição, nas instâncias ordinárias (e.g., pressupostos processuais, condições da ação, decadência, prescrição, etc.), não se sujeitam à preclusão, podendo ser suscitadas, ainda que em sede de Embargos de Declaração. Precedentes: STJ, AgInt no AREsp 1.106.649/SP, Rel. Ministro SÉRGIO KUKINA, PRIMEIRA TURMA, DJe de 06/12/2018; AgInt no REsp 1.516.071/SC, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, PRIMEIRA TURMA, DJe de 19/12/2019; REsp 1.571.901/SC, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, DJe de 19/12/2016;
AgInt no AREsp 1.088.794/SP, Rel. Ministro OG FERNANDES, SEGUNDA TURMA, DJe de 29/05/2019; REsp 1.797.901/SP, Rel. Ministro FRANCISCO FALCÃO, SEGUNDA TURMA, DJe de 19/08/2019; AgRg nos EDcl no AREsp 604.385/DF, Rel. Ministro MOURA RIBEIRO, TERCEIRA TURMA, DJe de 07/03/2016; AgInt nos EDcl no AREsp 1.552.050/SP, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, QUARTA TURMA, DJe de 15/06/2020; EAREsp 234.535/SC, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, PRIMEIRA SEÇÃO, DJe de 19/04/2017.”
[2] JÚNIOR, Humberto Theodoro. Prescrição e Decadência. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020. p. 78-79.
[3] BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Art. 1.034: “Admitido o recurso extraordinário ou o recurso especial, o Supremo Tribunal Federal ou o Superior Tribunal de Justiça julgará o processo, aplicando o direito. Parágrafo único. Admitido o recurso extraordinário ou o recurso especial por um fundamento, devolve-se ao tribunal superior o conhecimento dos demais fundamentos para a solução do capítulo impugnado.” Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm. Acesso em: 13 nov. 2024.
[4] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula 456: “O Supremo Tribunal Federal, conhecendo do recurso extraordinário, julgará a causa, aplicando o direito à espécie.” Disponível em: http://www.stf.jus.br. Acesso em: 13 nov. 2024.
[5] FREDIE, Didier Jr.; CARNEIRO DA CUNHA, Leonardo. Curso de Direito Processual Civil. 23. ed. rev. atual. e ampl. Vol. 3. Salvador: Juspodivm, 2020. p. 430.
[6] DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da. Curso de Direito Processual Civil: Meios de Impugnação às Decisões Judiciais e Processo nos Tribunais. v. 3. 20. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: JusPodivm, 2023. p. 431-432. No mesmo sentido MARTINS, Humberto. Decadência e Prescrição, op. cit., p. 49.
[7]BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no Agravo n. 939.714/RS, relatora Ministra Eliana Calmon, Segunda Turma, julgado em 12 de fevereiro de 2008. Diário da Justiça, Brasília, DF, 21 fev. 2008, p. 54.
[8] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 789.062/MG, relator Ministro Castro Meira, Segunda Turma, julgado em 28 de novembro de 2006. Diário da Justiça, Brasília, DF, 11 dez. 2006. No mesmo sentido: Recurso Especial n. 1.080.808/MG, relator Ministro Luiz Fux, Primeira Turma, julgado em 12 de maio de 2009. Diário da Justiça, Brasília, DF, 3 jun. 2009: “As matérias de ordem pública, ainda que desprovidas de prequestionamento, podem ser analisadas excepcionalmente em sede de recurso especial, cujo conhecimento se deu por outros fundamentos, à luz do efeito translativo dos recursos.”
[9]BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg nos EREsp n. 999.342/SP. Relator: Ministro Castro Meira, Corte Especial, julgado em 24 nov. 2011. Diário da Justiça Eletrônico, 1 fev. 2012. “Segundo a firme jurisprudência do STJ, na instância extraordinária, as questões de ordem pública apenas podem ser conhecidas, caso atendido o requisito do prequestionamento. Aplica-se, no caso, o óbice da Súmula 168/STJ.”
[10] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no REsp n. 1.873.701/RS, relator Ministro Felix Fischer, Quinta Turma, julgado em 1º set. 2020, DJe 14 set. 2020. “III – Outrossim, prevalece atualmente o entendimento de que é possível conhecer das questões de ordem pública de ofício, ainda que não prequestionadas ou suscitadas, na excepcional hipótese de o recurso especial ter sido conhecido por outros fundamentos, em razão do efeito translativo, foi superado em nova análise pela Corte Especial, que concluiu pela necessidade do requisito do prequestionamento na instância extraordinária. Precedente: AgRg nos EREsp 999.342/SP, Rel. Min. Castro Meira, Corte Especial, julgado em 24/11/2011, DJe 01/02/2012″ (STJ, AgRg nos EDcl no REsp 1.304.093/SP, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, DJe de 25/05/2012)” (AgRg no AREsp n. 213.112/RS, Segunda Turma, Relª Minª Assusete Magalhães, DJe 16 set. 2014) Agravo regimental desprovido.”
[11] “A aparente superação do entendimento anterior é lamentável, pois se resgata orientação retrógrada, que conspira contra o acesso à justiça e contra a efetividade da tutela jurisdicional. Também é lamentável tal superação, por contrariar entendimento consolidado de há muito e compendiado em enunciado da súmula do STF.”