Decadência tributária | Postado no dia: 2 outubro, 2024

Início do Prazo Decadencial Tributário: A Irrelevância da Ciência do Fisco Sobre o Fato Tributário

Com o objetivo de proporcionar a segurança, a certeza e a estabilidade das relações jurídicas, e de evitar que essas permaneçam indefinidas por tempo indeterminado, o direito positivo impôs limites temporais ao exercício de direitos. Para tanto, criou as figuras da decadência e da prescrição, que têm como consequência justamente a extinção de direitos, em função da inércia de seus titulares em exercê-los durante determinado período de tempo prefixado em lei.

No Direito Tributário, a decadência fixa o prazo para que a Fazenda efetue o lançamento do crédito tributário.[1] Já a prescrição se refere ao intervalo de tempo dentro do qual o Fisco deve exigir o pagamento do crédito lançado, quando não realizado de forma espontânea pelo contribuinte. Ambos os institutos têm como consequência a extinção do crédito tributário, conforme disposto no art. 156, V, do Código Tributário Nacional (CTN)[2].

Apesar de amplamente estudada e debatida na doutrina e na jurisprudência, a definição do termo inicial dos prazos decadenciais e prescricionais permanece sendo uma questão complexa e controvertida. No caso da decadência, muitos debates judiciais surgiram da dúvida sobre a necessidade de o Fisco ter ciência do fato gerador tributário como condição para o início do prazo extintivo.

Essa controvérsia culminou no surgimento do Tema 1048 no Superior Tribunal de Justiça. O objetivo foi definir o início do prazo de decadência previsto no art. 173, I, do CTN para a constituição do Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD) em casos de doação não declarada oportunamente pelo contribuinte ao Fisco estadual.

Os Recursos Especiais n. 1841771[3] e n. 1841798-MG[4], selecionados para representar o Tema, tiveram origem em acórdãos proferidos pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais, que adotaram entendimento de que a omissão do contribuinte afasta o curso da decadência até que o Fisco tome conhecimento do fato jurídico tributário. [5]

Pode até parecer lógico, à primeira vista, que o prazo decadencial só comece a correr após o Fisco tomar ciência do fato tributário. Essa percepção, porém, é superficial e ignora a essência do instituto da decadência. Dada a sua complexidade e relevância, é necessário um estudo mais aprofundado das normas e fundamentos jurídicos que a regem, para que se chegue a uma conclusão compatível com os seus princípios teleológicos.

 

1 – Fundamentos e princípios da decadência tributária

Como já mencionado, a decadência atua como um instrumento essencial para a estabilização das relações jurídicas, conferindo segurança e previsibilidade ao ordenar que os conflitos sejam solucionados em um prazo razoável.

A definição de um prazo para que as relações jurídicas se estabilizem importam também porque, como observa Luciano Amaro, “papéis perdem-se ou destroem-se com o passar do tempo. O tempo apaga a memória dos fatos, e, inexoravelmente, elimina as testemunhas”,[6] o que dificulta a defesa dos envolvidos na relação jurídica. Esse limite temporal ao exercício de direitos protege, portanto, aqueles que não são devedores e que, com o tempo, podem não ter mais provas da inexistência da dívida.[7]

Diante da evidente função de ordem pública da decadência[8], é claro o equívoco dos conceitos que a reduzem a uma mera sanção ao titular do direito que permaneceu inerte. Embora não se possa negar que o sujeito por ela atingido sofra uma penalidade indireta com perda do seu direito, essa não é a sua finalidade.[9]Tal assertiva torna-se evidente no contexto do direito de crédito da Fazenda, pois a punição do Estado não se harmonizaria com o interesse público da arrecadação tributária. Faz mais sentido prejudicá-lo (interesse de arrecadação) em prol de outro interesse público: o da segurança e da estabilização das relações jurídicas.

 

2 – Prazo Decadencial do art. 173, I do CTN

Nas situações em que cabe à Fazenda efetuar o lançamento de ofício para exigir o pagamento do tributo, o inciso I do artigo 173 do CTN estipula que este deve ser realizado dentro de um prazo de 5 (cinco) anos, contados do primeiro dia do exercício fiscal subsequente àquele em que o lançamento poderia ter sido efetuado.

“Art.173. O direito de a Fazenda Pública constituir o crédito tributário extingue-se após 5 (cinco) anos, contados:

I – do primeiro dia do exercício seguinte àquele em que o lançamento poderia ter sido efetuado;”

2.1 – O que é “constituir o crédito tributário”

 

Quando o legislador fala em “constituir o crédito tributário” está se referindo ao lançamento tributário, tendo em vista que no artigo 142 também do CTN, afirma que esta “constituição” se dá por meio do lançamento. No entanto, o crédito tributário nasce com a incidência da norma jurídica, no momento em que a hipótese normativa se realiza.

Uma vez concretizada a conduta prevista na hipótese normativa, esta incide de forma imediata e automática, independentemente de qualquer ato, vontade ou interferência humana, originando a relação jurídica tributária, composta pelo sujeito ativo, pelo sujeito passivo e pela prestação.

Pontes de Miranda ensina que nem mesmo a ignorância dos indivíduos quanto à existência da regra jurídica afasta a sua incidência, de forma que esta nunca falha. O que pode falhar é o seu atendimento ou aplicação, que não devem ser confundidos com a incidência propriamente dita.[10]

Portanto, não é o ato de lançamento que cria o direito subjetivo da Fazenda ao crédito, nem que a transforma em credora. Da mesma forma, o lançamento não gera a obrigação do sujeito passivo, nem o transforma em devedor. A existência da obrigação e do crédito tributário precede e independe do lançamento, advindo diretamente da lei no momento da ocorrência do fato gerador.

Contudo, para que o credor possa exercer o seu direito, é preciso cumprir requisitos formais, como a emissão do lançamento tributário, que apura o débito, notifica o devedor, fixa o valor devido e estabelece o prazo para pagamento.

Resumindo-se o lançamento à uma condição formal para que tal crédito possa ser exigido, tem-se que o prazo do art. 173 do CTN não é verdadeiramente para “constituição do crédito tributário”, mas para o exercício do direito ao crédito (que já existe) por meio da emissão do lançamento.

2.2 – Primeiro dia do exercício seguinte

 

No que se refere à expressão “primeiro dia do exercício seguinte” mencionado no artigo 173, este corresponde ao dia 1º de janeiro do ano que sucede aquele em que “o lançamento poderia ter sido efetuado”. E quando é que o “lançamento poderia ter sido efetuado”?

2.3 – Quando é que que o lançamento poderia ter sido efetuado?

O lançamento pode ser realizado a partir do momento em que existe um crédito a ser lançado, o que ocorre, como vimos, com a incidência da norma jurídica no momento da concretização do fato tributário. Em nenhum momento o texto normativo decadencial menciona em sua hipótese a ciência da Fazenda sobre a concretização do fato tributário como condição para que se dê o início do prazo decadencial. A verdadeira condição para que o prazo decadencial se inicie é a existência de um direito a ser exercido, a existência do crédito.[11]

Nesse sentido já se manifestou o Superior Tribunal de Justiça, afirmando que: “ A circunstância de o fato gerador ser ou não de conhecimento da Administração Tributária não foi erigida como marco inicial do prazo decadencial, nos termos do que preceitua o Código Tributário Nacional, não cabendo ao interprete assim estabelecer.”[12]

Assim, considerando que: i) as normas tributárias incidem automaticamente no momento da concretização do fato gerador, fazendo nascer o direito ao crédito tributário; ii) o lançamento pode ser efetuado desde o nascimento da obrigação ou do crédito tributário; e iii) não há qualquer norma que defina que o prazo decadencial só inicia depois da ciência do Fisco a respeito do fato tributário; conclui-se que o prazo de decadência terá início no primeiro dia do ano seguinte ao da ocorrência do fato tributário. Interpretação contrária afrontaria o princípio da legalidade estrita, que norteia o direito tributário.

3 – Prazo decadencial em caso de omissão do contribuinte em seu dever de declarar

No chamado lançamento por declaração ou misto, previsto no artigo 147 do CTN[13], é atribuído ao sujeito passivo ou a terceiro o dever de apresentar declaração contendo informações sobre a matéria de fato indispensáveis à efetivação do lançamento. A partir desta declaração, a Fazenda Pública emite o ato administrativo de lançamento e notifica o sujeito passivo para que efetue o respectivo pagamento.

 No caso de o contribuinte se omitir em seu dever de declarar ao Fisco a ocorrência do fato tributário, o inciso II do art. 149 do CTN determina que o lançamento deve ser efetuado de ofício, o que quer dizer que, ao invés de o contribuinte fornecer as informações necessárias para a emissão do lançamento, o próprio Fisco é que terá que apurar os fatos, fazer a subsunção legal e aplicar a norma tributária.

E se estamos tratando de lançamento de ofício, o prazo decadencial para que a Fazenda apure os fatos e efetue o respectivo lançamento é o prazo aqui já estudado do art. 173, I do CTN.

Nesse contexto, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), ao apreciar o Recurso Especial n. 1841798, consolidou o entendimento de que a omissão do contribuinte não impede o fluxo da decadência tributária, afastando o argumento de que “ não teria o fisco como tomar conhecimento do fato econômico gerador do imposto devido, muito menos das condições para produzir o lançamento”. Para a Corte Superior, o Fisco dispõe de meios para identificar ocorrências tributárias através de convênios ou instrumentos congêneres com outros órgãos administrativos ou mesmo com base em informações de imposto de renda fornecidas pelos próprios contribuintes.[14]

Assim, mesmo havendo omissão do contribuinte em seu dever de declarar a existência do fato tributário, o fluxo decadencial deve correr nos termos expostos no art. 173, I do CTN, cumprindo-se a sua função primária de consolidação das relações jurídicas.

Abrir exceções não previstas em lei, de modo a criar extensão indefinida do prazo decadencial, iria na contramão do objetivo principal do instituto da decadência de proporcionar a segurança jurídica através da consolidação das relações, por meio da extinção de direitos pelo decurso de tempo.

Portanto, feliz foi a conclusão do Superior Tribunal de Justiça no julgamento dos Recursos Especiais n. 1841771 e n. 1841798, no sentido de ser “juridicamente irrelevante, para fins de averiguação do transcurso do prazo decadencial, a data em que o Fisco teve conhecimento da ocorrência do fato gerador.” Essa perspectiva corrobora o princípio da segurança jurídica e resguarda o propósito da decadência.

 

4 –  Conclusão

 

Diante do exposto, é possível afirmar que a data em que o Fisco toma conhecimento do fato gerador tributário é irrelevante para a contagem do prazo decadencial, mesmo nos casos em que o contribuinte omite-se em seu dever de declarar tal fato, tendo em vista que:

I – A norma decadencial do art. 173, I, do CTN, aplicável aos casos em que o Fisco deve (seja originariamente, seja pela omissão do contribuinte) efetuar o lançamento tributário, não condiciona o início do prazo decadencial à ciência do Fisco;

II – Ocorrido o fato jurídico tributário, a norma decadencial incide automaticamente e infalivelmente, independentemente de qualquer ato, vontade ou interferência humana, seja por meio de declaração do contribuinte ou ciência da Fazenda;

III – O termo inicial, assim como os motivos de interrupção e suspensão do prazo decadencial tributário, deve estar previsto em lei complementar por força do art. 146, III, “b”, da CF, não cabendo ao aplicador do direito efetuar interpretação extensiva para criar novas situações não previstas em lei;

IV – Vincular a ciência do Fisco ao início do prazo decadencial resultaria na extensão indefinida do prazo, contrariando o propósito da norma decadencial de assegurar segurança jurídica por meio da estabilização das relações jurídicas.

 

Caroline Teixeira Mendes

Mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná

Especialista em Direito Tributário pelas Faculdades Integradas Curitiba

Ex-membro titular da Junta de Recursos Administrativos Tributários do Município de Curitiba (2004-2008)

[1]  BRASIL. Código Tributário Nacional. Art. 173: “O direito de a Fazenda Pública constituir o crédito tributário extingue-se após 5 (cinco) anos, contados: I – do primeiro dia do exercício seguinte àquele em que o lançamento poderia ter sido efetuado; II – da data em que se tornar definitiva a decisão que houver anulado, por vício formal, o lançamento anteriormente efetuado.”

[2]    BRASIL. Código Tributário Nacional: Art. 156. “Extinguem o crédito tributário: […] V – a prescrição e a decadência”.

[3]        Resp 1841771/MG, Relator Ministro Benedito Gonçalves, 1ª Seção, DJe de 10/05/2021.

[4]        Resp 1841798/MG, Relator Ministro Benedito Gonçalves, 1ª Seção, DJe de 07/05/2021.

[5]        Apelação Civel n. 1.0000.17.048904-1/001, 3ª CC, Relator Desembargador Judimar Biber.

[6] AMARO, Luciano. Direito Tributário brasileiro. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 396.

[7]   Nesse sentido, é a doutrina de Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda (Tratado de Direito Privado. Campinas: Bookseller, 2000, tomo VI, atualizado por Alves, Vilson Rodrigues, p. 135): “Serve à segurança e à paz públicas, para limite temporal à eficácia das pretensões e das ações. A perda ou a destruição das provas exporia os que desde muito se sentem seguros, em paz, e confiantes no mundo jurídico, a verem levantarem-se – contra o seu direito, ou contra o que têm por seu direito – pretensões ou ações ignoradas ou tidas por ilevantáveis. O fundamento da prescrição é proteger o que não é devedor e pode não mais ter prova da inexistência da dívida, tal como juridicamente ela aparecia.”

[8] Edylcéa Tavares Nogueira de Paula (Prescrição e Decadência no Direito Tributário Brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1984. p. 14) entende que a decadência e a prescrição foram instituídas para facilitar a estabilidade das relações jurídicas entre os indivíduos na sociedade, visando, assim, ao interesse público. Da mesma forma, Câmara Leal (Da Prescrição e da Decadência. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1982. p. 10) afirma que: “há um interesse social de ordem pública em que essa situação de incerteza e instabilidade não se prolongue indefinidamente”.

[9] Em sentido contrário, Ives Gandra da Silva Martins afirma: “Decadência e prescrição punem a desídia, a imperícia, a negligência, a omissão da Administração Pública e garantem segurança jurídica, dando estabilidade às relações entre Fisco e contribuinte, impedindo que, após determinado prazo, possam ser alteradas.” (Decadência e prescriçãoCaderno de Pesquisas Tributárias, n. 13, São Paulo: Centro de Estudos de Extensão Universitária/Resenha Tributária, 1976, p. 21).

[10]      MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de Direito Privado. 2.ed. Rio de Janeiro: Borsoi,1954. tomo I, p. 4-12.

[11]    AgRg no Resp. 577.899/PR, 2ª Turma. Relator Ministro castro Meia, DJ de 21/05/2008.

[12]    AgRg no Resp. 577.899/PR, 2ª Turma. Relator Ministro castro Meia, DJ de 21/05/2008.

[13]      BRASIL. Código Tributário Nacional. Art. 147: “O lançamento é efetuado com base na declaração do sujeito passivo ou de terceiro, quando um ou outro, na forma da legislação tributária, presta à autoridade administrativa informações sobre matéria de fato, indispensáveis à sua efetivação”.

[14]    REsp. 1841798/MG, S1 – Primeira Seção, Relator Ministro Benedito Gonçalves, DJe 07/05/2021. No mesmo sentido: AgInt no Resp. 1690263/MG, 2 Turma; Relator Ministro Francisco Falcão, Dje 16/09/2019.